A República de Curitiba e o caudilhismo judicial
por Murilo Naves Amaral
No processo em que o ex presidente Lula é acusado de ter se beneficiado de uma reforma em um sítio no município de Atibaia, que supostamente seria de sua propriedade, presenciamos, recentemente, um fato bem interessante, no qual a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal determinou o encaminhamento das delações de ex executivos da construtora Odebrecht para a justiça federal de São Paulo, de modo a retira-las das mãos do juiz Sérgio Moro. Em um primeiro momento, parecia que na decisão emanada pelo STF estava sendo declarada a incompetência do juízo de Curitiba na condução geral do referido processo, a ponto que, quando o magistrado Sérgio Moro se negou a fazer a remessa do autos até a publicação do acordão proferido, muitos se indignaram, de maneira a acusa-lo de abusar de sua autoridade e de descumprir a ordem de uma instância superior.
Entretanto, a confusão que se fez sobre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, talvez, não fosse tão confusa assim, posto que, o que pode ter ocorrido, é que tal fato apenas expôs mais um capítulo da banalização das regras processuais vigentes, que como bem lembrou a professora do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Eloísa Machado, em artigo publicado na data de 03.05.2018 no Blog do Sakamoto, vem culminando nos danos que já são claramente perceptíveis, dentre os quais “a erosão da autoridade dos tribunais superiores, a justificação de cruzadas judiciais e garantias processuais sendo mandadas às favas ”.
Cabe lembrar, que o recuo do Supremo em relação a essa questão, trata-se de um recuo em relação a garantias processuais básicas, dentre as quais, as regras de competência, que além de serem imprescindíveis para o bom funcionamento do processo, devem ser vistas como um pilar do Estado de Direito, já que asseguram ao cidadão a possibilidade de se proteger contra o exercício desenfreado e sem limites de determinada autoridade. Nota-se que, a própria imprensa pressionou significativamente para que a decisão do Supremo tivesse uma releitura. Tanto é fato, que na data de 25 de abril de 2018, o colunista Merval Pereira, em matéria publicada no jornal “O Globo”, chegou a chamar de “precedente perigoso” a decisão da Segunda Turma do STF, com o claro intuito de fazer pressão para que houvesse uma adequação do entendimento sobre a matéria, de modo que a ação continuasse em trâmite na Justiça Federal de Curitiba.
O desespero daqueles que querem ver Lula apodrecer na prisão e fora do jogo político eleitoral de 2018, surgiu a partir do momento em que se verificou a possibilidade de diante tal entendimento do Supremo, configurar a anulação do processo do triplex do Guarujá, em razão de Moro não ser o juiz natural para tê-lo julgado. Isso porque, já há tempos vem se questionando a competência do juízo de Curitiba de abarcar tantas ações, uma vez que, muitos dos supostos crimes apontados não teriam ocorridos no território do Paraná e tampouco teriam relações diretas com os casos da Petrobrás, de forma que, pelo menos em tese, tais demandas deveriam estar tramitando em outras subseções judiciárias, por questões estritamente técnicas e processuais.
Porém, ao contrário do que ensinam as faculdades de Direito, o que parece é que as regras de competência passaram a ser estabelecidas a partir da histeria da opinião pública fabricada pela mídia, sem qualquer observância as questões legais que deveriam servir de referência na hora de se estabelecer qual juízo irá processar a ação. Em outro artigo que escrevi e que foi publicado aqui no Blog do Nassif (https://jornalggn.com.br/noticia/quando-o-direito-se-torna-papo-de-boteq...), constatei que essa nova forma de condução do processo judicial, tornou o Direito em um verdadeiro papo de botequim, não no sentido de tornar acessível a linguagem jurídica, o que é extremamente positivo, mas no sentido da vulgarização que os meios de comunicação, buscando atender seus interesses, manipulam a linguagem e a técnica do procedimento judicial, principalmente a partir da espetacularização e do deslumbramento infantil das autoridades perante os holofotes.
Essa histeria propagada pela mídia, que favorece a banalização dos procedimentos judiciais, faz com o que, ao mesmo tempo, haja um retorno daquilo que estigmatizou profundamente a sociedade brasileira, que é a consagração do personalismo em volta de figuras que muitas vezes não possuem a qualidade natural de serem líderes, mas que se mantém como protagonistas, em razão de uma manipulação da sociedade pelos meios de comunicação. Na situação que vivenciamos hoje, esse personalismo vem sendo construído a partir de personagens da burocracia de luxo, sobretudo os juízes, que são glamourizados em suas funções. No caso de Sérgio Moro, o personalíssimo chega a tal ponto, que o referido magistrado é tratado quase que como um pop star ou um super herói pelos meios de comunicação, acima do bem e do mal ou de qualquer suspeita, de forma que, conforme também comentei no texto publicado no Nassif e intitulado “Quando o direito se torna papo de botequim”, a blindagem concedida a Moro “deveria soar como ofensa aos demais juízes, pois pelo que se retrata na imprensa, fica parecendo que somente o ilustre magistrado paranaense é que tem compromisso em julgar de maneira séria casos de corrupção.”
Como resultado desse fenômeno de exaltação da imagem de certas autoridades, o risco maior que se verifica é que essas mesmas autoridades passem a acreditar no pedestal em que são colocadas pela mídia, de maneira que, inclusive, passem a se insubordinarem contra instâncias superiores que deveriam se dirigirem. Um bom exemplo disso, foi o que narrou Eloísa Machado, no mesmo artigo acima mencionado e que foi publicado no Blog do Sakamoto, em que Moro já havia enfrentado instâncias superiores, de modo que foi censurado pelo Tribunal Regional da 1ª Região ao se negar a cumprir decisão que mandou suspender a extradição de um dos acusados da Lava Jato, a ponto que o Tribunal chegou a se manifestar no sentido de que “não é minimamente razoável que um dos juízes arvore-se por competente e decida por si só, sem aguardar a decisão da Corte Superior […]. É inimaginável, num estado democrático de direito, que a Polícia Federal e o Ministério da Justiça sejam instados por um juiz ao descumprimento de decisão de um tribunal, sob o pálido argumento de sua própria autoridade.” Outro fato lembrado pela ilustre professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foram os fatídicos áudios liberados por Moro, que, sem qualquer relevância jurídica, permitiram que fosse publicizada uma conversa entre os ex presidentes Lula e Dilma, apenas para expô-los perante a opinião pública, de forma que os riscos relativos a essa conduta, inclusive ao interesse nacional, foram totalmente menosprezados.
Tais acontecimentos demonstram por si só, que este personalismo construído pela imprensa, acaba gerando um senso de impunidade que se mostra evidente na manifestação de determinadas autoridades, que, por sua vez, cometem seus atos como se fossem verdadeiros déspotas, sem qualquer responsabilidade por aquilo que praticam. Tirando o fato que tal contexto, atualmente, se consagra pelo Judiciário, na verdade, o fenômeno de se criar figuras personalistas trata-se de algo que sempre esteve presente na realidade latino americana, seja nas ditaduras impostas aos países da região, seja no típico caudilhismo que marcou profundamente a história desses povos, a partir de lideranças autoritárias que buscaram se perpetuar de algum modo no poder. Não seria demais dizer, que essas figuras judiciais que se autoproclamam salvadores do povo, seriam os caudilhos da contemporaneidade, que fingem estarem munidos de uma técnica jurídica processual, mas que ao final, estão, na realidade, praticando a pior política sob o disfarce da burocracia.
Destaca-se, no entanto, que a utilização da mídia para fins de manipulação de massas, como forma de exaltar lideranças ilegítimas, não se trata de um cenário tão recente, tendo em vista que esse método já era utilizado pelos nazistas, conforme muito bem ressaltou a Escola de Frankfurt ao narrar o funcionamento da Indústria Cultural a partir das teorias de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Algo muito semelhante vem ocorrendo no Brasil, considerando que a indústria cultural não se limita a imprensa, posto que também se encontra presente na área do entretenimento para fins de propaganda do sistema. Não é à toa que recentemente estamos vendo tanto em um filme como em uma série de um serviço de streaming, a exaltação das autoridades em um suposto “combate à corrupção”.
Além do já exposto, um outro risco desse personalismo e dessa romantização da atividade judicial é a consagração de um processo de criminalização da política e desvalorização do voto popular, de tal modo que, como também testemunhamos recentemente, o Supremo Tribunal Federal, apesar dos apelos contrários de parte dos ministros, relativizou a prerrogativa de foro daqueles que possuem cargos eletivos, sem que incomodasse qualquer outra autoridade que possui o mesmo benefício, mas que está inserida na administração pública por meio de concurso ou nomeação vitalícia. Trata-se de um verdadeiro acinte a população, haja vista que fragiliza a prerrogativa de quem possui o voto popular, mas mantêm intocáveis aqueles que, sem a legitimidade do voto, atuam na esfera administrativa e judicial.
A medida que essa situação vai se concretizando, a segurança jurídica tanto da população em geral como também das empresas que estão presentes no país se torna cada vez mais vulnerável, já que na concepção daqueles que são exaltados na qualidade de justiceiros do Estado, as regras vigentes aprovadas pelo legislativo passam a ser um mero detalhe. Em outras palavras, é como se os juízes, em razão da força institucional que conseguiram, pudessem decidir com uma discricionariedade, cuja oportunidade e conveniência não estivessem mais na lei, mas sim na subjetividade ideológica de cada magistrado.
Deve-se salientar que a operação Lava Jato foi decisiva nesse contexto, uma vez que a aliança com a mídia proporcionou o fortalecimento de determinados setores judiciais, que, consequentemente, acabou por acarretar em um forte desequilíbrio institucional. Nesse sentido, com os frutos da operação Lava Jato, em que praticamente se criou um Estado paralelo com regras próprias e sem qualquer observância à Constituição, o agravamento da crise se perpetuou na realidade brasileira, pois, com o personalismo do magistrado que conduz as ações oriundas da justiça federal do Paraná (vinculada ao Tribunal Regional Federal da 4ª região), juntamente com seus soldados procuradores, apesar da aparência de modernidade dada pela imprensa, a república de Curitiba, como qualquer republiqueta latino americana, já pode ter um caudilho para chamar de seu.
Murilo Naves Amaral - Advogado, com mestrado em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia, professor universitário de cursos de graduação e pós graduação em Direito em São Paulo e Minas Gerais.